Folha de S.Paulo
São Paulo, sexta, 30 de outubro de 1997.
da Reportagem Local
Da sala em que trabalha, na avenida Angélica, o tecnólogo Wadih Roberto Haddad Neto, 50, vê o túmulo da mulher, Marilene Gimenes Haddad, no cemitério do Araçá (zona sudoeste de São Paulo). ''Isso tudo dói muito, mesmo um ano depois.''
Marilene foi uma das 99 vítimas do vôo 402. Deixou o marido e Leandro, filho que hoje tem 19 anos. Haddad ainda não se acostumou. Lembra dela quando toma uma cerveja ou come um aperitivo. Chora de vez em quando. E não suporta datas como a do aniversário dela, que faria 42 anos sexta passada.
Leia a seguir o depoimento de Haddad.
''O pior trauma que alguém pode passar é ver a pessoa amada sofrer uma morte abrupta e comentada. Hoje, por onde passo, sou o viúvo da TAM. O pessoal me olha e pensa que sou um coitado. Talvez não um coitado, mas até em reuniões de negócios há um olhar diferente. Há uma solidariedade que machuca.
Faz um ano que a Marilene faleceu, mas parece que foi ontem. Até hoje eu tenho minhas dúvidas se ela morreu mesmo. O caixão fechado ajuda nisso. É diferente de quando você vê a pessoa lá. Acabou e pronto.
Vivi fases muito diferentes nesse ano que passou. No primeiro mês, parecia que eu tinha usado droga: não chorava e dormia direito. Eu parecia anestesiado. Uma barata com inseticida.
Depois, minha vida virou uma bagunça e perdi a vontade de fazer as coisas. Larguei a ginástica, relaxei com os remédios para pressão alta. Teve uma fase em que tomei uns uísques a mais. Passou, graças a Deus, mas podia me consumir. Só no trabalho é que me multipliquei por 200.
Cada data é motivo para sofrer. No aniversário do Leandro, em agosto, veio aquela recordação de quando saíamos os três para jantar. Voltou até coisa mais antiga, o nascimento dele. Ele nasceu de sete meses e depois tivemos um filho, o Rodrigo, que foi prematuro e faleceu.
A Marilene sofreu muito por não conseguir segurar os bebês e passamos aquilo tudo juntos e isso aproximou a gente. Agora ela foi embora e eu lembro de tudo sozinho.
''No aniversário dela, lembrei quando a gente ia dançar''
O aniversário dela foi sexta passada. Fui ao cemitério de manhã, levei flores. À tarde, não consegui trabalhar. Fiquei em casa, triste. Quando ela fazia aniversário, a gente ia dançar no clube Piratininga ou no Tietê. Ela era pé-de-valsa, dançava de tudo, até lambada, mesmo sem ter muita ginga. Na sexta, não teve jantar. Não comi, não dormi , nem meu filho. Nenhum dos dois tocou no assunto.
Quando eu vejo na TV aquela imagem dos corpos enfileirados, eu choro. Já devia ser corriqueiro, mas ainda dói muito. Você começa a imaginar aquele pacotinho... Minha sogra outro dia viu a cena pela primeira vez e ligou. 'Sabe, Roberto, eu vi aqueles sacos e você sabe que eu fiquei procurando a Marilene...' Aquilo foi pesado para mim.
Quando vou a um bar, é como se ela estivesse lá. Estaria pegando no meu pé, porque sempre fui extrovertido e ela, baixinha e brava, reclamava. Também pegava no meu pé quando eu comia muito. Se eu pego uma bolachinha a mais, penso nela. Não sei quanto tempo isso vai durar.
Até hoje eu não sei como ser pai e mãe. Ela era psicóloga, orientava meu filho em coisas que eu não conheço. Minha orientação sempre foi uma coisa mais de homem para homem. É muito complicado até hoje.
Tem uma coisa que eu não entendo. Será que é certo a Aeronáutica estar mais preocupada em explicar a coisa para estrangeiros do que para nós, que perdemos nossa pessoa querida? Eu e meu filho somos consumidos todo dia porque o assunto não está resolvido. Isso encolhe o resto de vida que a gente tem. Vou sentir alívio quando o culpado aparecer e espero que seja logo. A vida tem de continuar.''